Monday, May 14, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 12ª de 16 partes)



CAPÍTULO XX

João, às vezes, percebia que passava por um dos melhores momentos da sua vida. Então, de onde vinha aquela enorme angústia que o impulsionava, de diversas maneiras, a tentar detonar com tudo? Há alguns dias, sentado na privada, lera uma antiga entrevista de Eric Clapton, onde ele, refletindo sobre seus muitos problemas com a heroína e o álcool, afirmava que os artistas, em particular, possuem uma espécie de obsessão por comportamentos destrutivos. E isso, segundo Clapton, ocorria justamente quando tinham pensamentos criativos. Para fugir da dor que envolve todo o processo de criação, eles acabavam, de maneira inconsciente, chutando o pau da barraca. O problema, no caso, é que era justamente o pau da barraca “deles” que eles chutavam. Então, como é óbvio, eles é que se fodiam.

A questão é que Clapton era “Deus” e João não era nem mesmo um anjo de segunda categoria, muito menos artista. Sendo assim, a sua compulsão por detonar tudo quando as coisas iam bem não podia ser atribuída à obsessão que, conforme Clapton, vitimava muitos artistas.

De qualquer forma, essa conversa toda o levou a lembrar-se de quando, muitos anos atrás, um psiquiatra com quem se consultava, comentando a sua compulsão por álcool e qualquer outro tipo de droga que lhe caísse nas mãos, afirmou: “Cara, você tem que parar com isso. Você precisa entender e aceitar que não é o Keith Richards. Nem guitarra você toca, rapaz.”

Mas o ponto fundamental era que João, lá no fundo, começava a achar que a coisa toda com relação a Jeremias tinha a ver com essa sua irresistível tendência a jogar merda no ventilador, quando o ar ao seu redor começava a ficar puro. Afinal, ele estava quieto no seu canto, quer dizer, não tão quieto assim, já que havia tido a inconveniente idéia de começar a escrever um outro livro, mas pelo menos era o “seu” livro, e não a história de outra pessoa, que ele, aliás, tinha se empenhado muito em tirar da sua cabeça – e, lógico, do seu coração e, lógico, da sua vida.

De qualquer forma, já fazia cerca de duas semanas que Jeremias mantinha o mais absoluto silêncio.

Isso, contudo, não estava refrescando muito, já que, na falta de material novo, João continuava a remexer no material antigo. Cada vez que pegava no texto, achava que alguma coisa não estava boa e reescrevia tudo. Foi numa dessas suas investidas perfeccionistas que ele se deu conta de que o texto parecia estar ficando muito longo, em relação ao que ele imaginava que Jeremias tivesse originalmente encaminhado. Embora ele apenas pudesse imaginar o tamanho do texto original, resultado da soma dos fragmentos enviados por Jeremias, já que João tinha, recentemente, deletado tudo, num dos seus cíclicos acessos de fúria em que decidia nunca mais botar a mão naquilo, mas, por algum motivo, sempre acabava mudando de idéia.

Ao mesmo tempo, o reaparecimento de Jeremias, ainda que no mundo virtual, o tinha colocado novamente diante de um antigo dilema: enfrentar ou não o que ele chamava de “situações inacabadas”. Ele identificava várias dessas situações em sua vida, situações em que a gestalt não havia sido fechada, em geral porque os conflitos entre as pessoas envolvidas haviam sido muito intensos e a pressão tinha se mostrado insuportável, fazendo com que a opção fosse cair fora, deixando as coisas mal resolvidas. Os esqueletos, contudo, permaneciam dentro do armário e, de vez em quando, faziam barulho durante a noite. João tinha a sensação de que havia muitos fios soltos e desencapados, o que tornava a possibilidade de um curto-circuito uma ameaça constante.

Com freqüência, achava que só encontraria algum tipo de paz interior quando resolvesse, fechasse essas situações inacabadas. Mas logo se questionava se isso valia a pena. Afinal, como ele mesmo admitia, existiam várias dessas situações e, se ele entrasse numas de fechar cada uma delas, provavelmente teria que passar o resto da sua vida fazendo isso, e então nunca atingiria a tal da paz interior que almejava, já que, com certeza, morreria antes de completar a missão.

E havia ainda um outro problema: mexer com essas situações poderia, em vez de melhorar, piorar as coisas, já que as outras pessoas envolvidas poderiam muito bem não querer mais se meter com aquilo. Existia sempre a possibilidade de, ao se mexer na merda, ela feder ainda mais.

Por fim, ele também tinha sérias dúvidas a respeito de se essas situações inacabadas não estavam inacabadas apenas na cabeça dele. Se fosse assim, não havia nada a fazer, a não ser tentar começar a aceitar isso e seguir em frente.

Jeremias era mesmo um grande de um filho da puta!


CAPÍTULO XXI

A neblina deixava a cidade diferente e ele gostava disso. Aliás, qualquer coisa que deixasse a cidade diferente o deixava satisfeito. Quando percebia isso, se perguntava por que não dava um jeito de cair fora de uma vez por todas. Não havia o mínimo sentido em continuar vivendo numa cidade que só ficava interessante quando não parecia a mesma cidade, como acontecia agora, enquanto a neblina encobria o alto dos prédios da orla da praia e, do outro lado da avenida, próximo da areia, escondia o mar atrás de uma névoa branca e densa.

Mas aquela neblina logo se dissiparia e o calor se tornaria cada vez mais forte. Bem, mas enquanto isso não acontecia, ele poderia fingir que estava em outra cidade, ou melhor, “naquela cidade” onde, muitos anos atrás, ele e Jeremias viviam. Com certeza não era a mesma cidade por onde agora ele caminhava, seguindo a avenida à beira-mar. Ou talvez aquela cidade nunca tivesse existido, a não ser na cabeça daquelas pessoas. Mas Jeremias que se fodesse, ele iria continuar caminhando por aquela cidade estranha escondida e revelada pela neblina.

Aquelas mulheres reunidas na praça pareciam mães conversando sobre seus filhos, mas não estavam rodeadas de crianças, mas sim de cachorros, sete ou oito cachorros dos mais diferentes tamanhos e raças. Embora João não pudesse ouvi-las, devido à distância a que se encontrava, sentado num banco afastado, não havia dúvida de que elas falavam a respeito dos seus cachorros. João ficou alguns instantes observando os cachorros, alguns parados, apenas apreciando a paisagem, outros brincando entre si. Interessante aqueles cachorros, tão diferentes, se darem tão bem.

Havia alguma coisa errada naquela premissa quase religiosa que insistia em que éramos todos iguais. Estupidez, concluiu João, éramos todos diferentes, muito diferentes, não só em termos de raça, mas também em termos sociais, culturais, individuais. A saída, pensou ele – se é que havia uma saída -, era procurar conviver com as diferenças, aceitar a diversidade era o único caminho, como aquele grupo de cachorros estava demonstrando, de uma forma tão simples e direta.

Foi mais ou menos por aí que aconteceu. João se sentiu como se estivesse em outro lugar, aquela não era a praça pela qual já passara centenas de vezes e aquela não era a cidade onde ele vivia.  Gostava muito quando esse tipo de dissociação alterava a sua percepção. Era algo raro de acontecer e não se lembrava de nenhuma ocorrência do tipo nos últimos tempos. Quanto isso aconteceu pelas primeiras vezes, ele associou o fato a alguma possível seqüela do consumo, alguns anos antes, de ácido lisérgico, ou mesmo maconha. Logo percebeu, contudo, que, apesar das semelhanças na alteração de percepção, aquilo não tinha nada a ver com causas externas, mas internas. Embora tivesse deixando de consumir as duas substâncias há muitos anos, conseguia até mesmo provocar esses estados de percepção alterados, bastando concentrar-se para isso. Mas o que ele estava agora experimentando naquela praça não havia sido premeditado, pegou-o de surpresa. Sua única interferência proposital, no caso, foi tentar prolongar conscientemente aquele estado alterado o máximo de tempo possível.a

Ver coisas e lugares conhecidos como se fosse pela primeira era uma sensação incrível. Devíamos fazer isso mais vezes, pensou João, concluindo que a freqüência cotidiana com que vemos as coisas e os lugares de sempre embota a nossa percepção do real, já que, depois de um tempo, apenas registramos, sem ver, a imagem das coisas e dos lugares que está gravada em nossa mente. Ou seja, na verdade, não vemos, apenas pensamos que vemos. Se é assim com as coisas e os lugares, o mesmo deve ocorrer em relação às pessoas conhecidas. Depois de um tempo, também não as vemos mais, apenas imaginamos que as estamos vendo. Desconstruir nossa percepção embotada, durante períodos de tempo pré-determinados, devia se transformar num exercício usual, uma forma de treinarmos para perceber melhor a realidade…

A sirene estridente de uma ambulância que passava do outro lado da praça trouxe João, abruptamente, à realidade “normal”, ou embotada, isto é, a praça onde estava sentado voltou a ser a praça conhecida de sempre, localizada na cidade  que, sem dúvida, tinha voltado a ser a cidade de sempre. Até mesmo a neblina havia desaparecido.

Então, lembrou-se de Lennon que, no final de “God”, onde, depois de anunciar que o sonho havia acabado, dizia “então, meu caro amigo, o negócio é seguir em frente”, ou algo parecido com isso. De qualquer forma, decidiu seguir em frente, e bem em frente havia um grande shopping cujas lojas, àquela hora da manhã, começavam a abrir as portas. Enquanto entrava naquele local ainda quase deserto, lembrou-se de que, alguns anos antes, a construção daquele shopping naquele bairro e de um john_lennonenorme hipermercado em outro bairro havia começado a definir a cara que aquela cidade tinha hoje. Não era por acaso que os dois locais em que foram edificados os dois empreendimentos estavam, originalmente, reservados para parques, quadras esportivas e áreas de convivência. Não era por acaso que nos dois locais surgiram um enorme shopping e um grande hipermercado. Não era por acaso que ele gostava da neblina que parecia tornar uma outra cidade possível, pelo menos em sua cabeça.

Mas nem tudo estava perdido. Dentro do tal shopping, numa improvável prateleira dos fundos de uma livraria, um também improvável livro novo de Bukowski, “Ao sul de lugar nenhum”, com contos inéditos. João tinha praticamente certeza de que não havia mais nada publicado de Bukowski que ele ainda não tivesse lido. No entanto, ali estava a evidência de que isso não era verdade. Comprou o livro e foi embora da porra do shopping, com a sensação de que tinha se vingado de alguém, talvez do sujeito que havia construído aquela merda.

E como nem tudo estava perdido, ele logo divisou, algumas ruas depois, a placa do hotel onde ele e ela haviam passado uma noite, anos antes, na verdade uma noite de sábado para domingo. Lembrou-se, então, de que naquela noite de sábado eles haviam ido passear no tal shopping e ele tinha a sensação, naquela noite, de que estava numa outra cidade. Mas não se tratava de nenhum daqueles momentos de percepção alterada.  Ao contrário, a impressão era causada por dois fatos bem concretos. Um deles era que, pela primeira vez, ele e ela iriam passar uma noite inteira de sábado juntos, o que lhe dava a inusitada sensação de que eram um casal de verdade, e não dois foragidos da justiça, como em geral vinham se sentindo na época. O outro motivo era que ele jamais havia entrado, até então, naquele shopping. Assim, juntando essas duas coisas, era como estar passeando em outra cidade.

E lá estava a placa com o nome do hotel daquela noite de sábado. E lá estava ele olhando para a placa e pensando em quanto tempo havia se passado desde aquele dia, e como tinha sido bom passear com ela naquele dia, jantar com ela no quarto do hotel naquele dia, fazer amor com ela naquele dia, acordar ao lado dela e, então, descobrir que já era domingo e que ambos teriam que se despir de suas capas de super heróis e voltar ao mundo real. Bem, pensou ele, o mundo real agora não era tão punk como naqueles dias. Mais uma vez, João concluiu que nem tudo estava perdido.

Quando deu por si, estava em outra praça, bem distante da primeira, se aproximando do porto pelo lado inverso da ilha. Sentou num dos bancos, observou uma velha mendiga dormindo abraçada ao seu saco de farrapos e bugigangas. Então João olhou para suas mãos e percebeu várias pequenas manchas escuras e claras. Não havia dúvida, ele estava mesmo ficando velho.




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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)


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