Wednesday, April 11, 2018

GANA (por Marcelo Rayel Correggiari)



Acho que começou com uma privação. Foi o que me disseram.

Nunca ficou muito claro. Deve ter sido isso.

Dizem os especialistas que têm duas coisas que mexem muito com o cérebro: trauma e privação. Quando acontecem com alguém, é o despertar de uma inconsciência capaz de perpetrar os mais obtusos gestos.

Teve origem muito pobre. Migrante, fugiu da fome. Acho que deve ter sido isso. Privação, deve ser esse o nome. Dizem os especialistas que qualquer forma de privação, comida, trabalho, dinheiro, sexo, saúde, lazer, roupa, transporte, água, educação, faz com que qualquer um mude radicalmente sua maneira de pensar.

O mais grave é que esse ‘novo pensar’ pouco tem a ver com aquele mínimo de bom-senso no interior da realidade. Vejam seu principal aliado no Congresso: preso, reclamou da falta de conforto do camburão quando transferido para assistência médica. Fala como se não estivesse preso, cumprindo pena. Estranho isso? Nem tanto... faz tempo que age como se não fosse com ele, desde os tempos de presidência da casa.

É... isso! Uma espécie de ‘... não fala coisa com coisa...’. Como ele estivesse fora dele mesmo a maior parte do tempo. No caso do aliado, vejam, não se sabe de alguma privação. Trauma, talvez. Não sei se justifica.

Estranho isso? Não sei. Tem tanta gente andando pelas ruas agindo da mesma forma... pois, acho que é isso: construímos um mundo que é de enlouquecer. Tudo dá errado. E dá errado justamente por causa dessa desassociação com o real. As pessoas acham que podem agir sem o menor comprometimento com eventuais desdobramentos. ‘Tá’ assim de gente fazendo isso. Parece epidemia.

Foi triste. Acho que é triste, quando uma coisa começa ruim e termina ruim. Você se ergue fugindo do cárcere e no final da vida volta para lá. É como se tudo o que aconteceu no meio desses dois extremos não serviu para se saber quando é que se recua.

Por nada, a vida se encerra. Por nada, uma vida se encontra encerrada num cômodo, triste, lamentável. Muito se fez e nada se caminhou. Uma sensação de angústia porque nunca sai uma civilização desses ciclos de sonhos cuja ressaca é o pesadelo de que ‘... não foi dessa vez’.

O ‘poder pelo poder’ tem esse custo: uma privação geral de liberdade. O mais grave é que a liberdade deixa de ser um princípio por quase se desdizer em sua execução: em campo, uma povo dinheirísta porque só ele, o dinheiro, é que permite substituí-la. O ‘poder pelo poder’ garante dinheiro, e dinheiro é tudo. ‘Pro’ inferno com esse negócio de caráter: caráter não mata a fome, não dá teto... bom mocismo de pobre é uma coisa execrável.

Esse é o projeto. Se houve algum, é claro. O projeto de poder é dinheiro, porque dinheiro permite qualquer um foder o próximo, no conotativo e no denotativo. Esse é o projeto. Nada mais importa. É muita sede de ‘poder pelo poder’, porque garante dinheiro, sede de uma acumulação amalucada cujo método é o engodo, matar inimigos, aniquilar a humanidade.

Sede. Sede pura. Acho que deve ser privação em algum momento. Não sei, nunca fica claro. Talvez explique essa gana por poder, por dinheiro, essas coisas. Perdem-se todos os freios, todas as decências, vira ‘vale-tudo’. Privação vira gana. Acho que é isso. A mente pára de funcionar e privação vira gana. Esse negócio de bem-estar para todos, num coletivo, é cascata. Dá uns discursos bem bonitos, mas, no fundo, ninguém pratica o que foi dito.

Qualquer um acaba só valendo pela casa que tem, pelo carro que dirige, pela marca que veste, pela posição que possui. Sempre foi assim desde que o mundo é mundo. Alguém vai ganhar e milhões vão perder. Para os derrotados, a cansativa corda-bamba: ‘bora’ se equilibrar.

Foi triste. Entre um cárcere e outro, uma rastro de ‘combatividade’ que nada mais era do que uma cortina de fumaça para o ódio. Gana e ódio. Ódio: olha ele aí, de novo. Tudo é ele. Parece, nesses dias, que tudo é ele. Está em todos os lugares, mergulhados até o último fio-de-cabelo nele. É quando a desgraça vira festa, porque parecia réveillon na porta da delegacia. Não era amor. Tinha o nome de amor, mas era gana, era ódio. Ódio contra ódio, ódio contra um projeto pessoal. Os cérebros estão parando de funcionar.

Nesse trecho da vida que mais parece uma contagem regressiva, cárcere. Finais de vida deveriam ser nos lugares preferidos, no frescor de uma montanha ou na brisa de uma praia. Isso, sem qualquer tralha por perto. Uma criatura que se encerrará no silêncio das belezas. Livre. Livre de ódios, de amores, de ansiedades e angústias, de cansativos consumos, de afeições e desafeições, quinquilharias físicas e espirituais.

Não num cárcere.

Em revista, a partir do lugar onde nasceu como ente público, as fábricas onde trabalhou, as delegacias que visitou, os voos quando nos postos de comando de um povo que anseia por civilização perene, definitiva. Liderou um povo, sim, um povo que desconhece o desdobramento de tudo, as lições do que se viveu. Desconhece os preços da independência e repete sebastianismo.

Sem esperança, repete o modo perpétuo de sonho na prateleira do supermercado. Típico de quem vive em eterna privação. Sobra gana, irmã do ódio. E tudo mais azeda. Foi líder de um lugar onde se espera o surgimento de um povo. Além de um povo, uma civilização.

E uma fortíssima suspeita de que esse dia nunca chegará.

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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