Wednesday, April 4, 2018

DENÚNCIA FRANCESA (por Marcelo Rayel Correggiari)




Tudo é comportamento?
O que levaria alguém a fazer o que faz?
Qual o sentido por trás de certos gestos e atitudes?
O cinema francês, seja pela herança do Existencialismo de Sartre ou pelo esmiuçamento de seus grandes pensadores como Proust, Foucault, Blanchot, Derrida e Deleuze, até hoje se mostra revelador na crítica social (em especial, a dos costumes).
Uma coisa é quase certa: em parte dos trabalhos produzidos pelos nomes supracitados, forte influencia igualmente do pensamento psicanalítico, como o de Jacques Lacan.
Nessa miscelânea que tudo abarca, a pergunta-chave que abrange essa escola francesa do Existencialismo: “Mas que caralhos isso significa?!”.
O engano muito comum entre os tupiniquins em relação a essa ‘escola filosófica’ é achar que Existencialismo é ‘só sobre a existência’, “... o que nos faz existir...”, “... por que existimos desse jeito...”, “... por que desse jeito e não daquele...”, “... o que nos impede de atingirmos a felicidade...”, e por aí vai. O ‘trem’ vai bem mais além: boas quantidades de frutíferas indagações costumam determinar um objeto de contemplação a ponto de tirá-lo de sua mais básica (e, às vezes, grotesca!) abstração.
Ou seja, o Existencialismo não seria somente sobre “o existir”, mas quais os significados de tudo aquilo que nos cerca e/ou acontece em nossas vidas, o que a “Existência” pode intuir & conceber em termos de significado, além de atribuir significado sobre tudo e sobre si mesma.
“Qual o sentido dessa josta?!” é a pergunta corriqueira de um(a) existencialista pela alta madrugada com um copo na mão à mesa de algum bar-da-vida que se dignificou em permanecer aberto até esse horário.
Pode também ser de pé no Cinza. Sem problemas...
O Existencialismo pode com certa segurança se tornar uma abordagem suficiente quando os valores ao redor de alguns significados são revisitados. Isso implicaria que eles são o ‘coração’ de tal pensamento, e as investigações sobre seus eventuais desdobramentos são o núcleo de boa parte das contestações sociais, dos costumes e da ordem das coisas.
Qualquer semelhança entre isso e o movimento do cinema francês a partir de 1958 conhecido como “Nouvelle Vague” pode não ser, assim, tão mera coincidência.
O espírito crítico a partir da figura do diretor nas reclamações de como o mundo se arregimentava na época tornou essa escola do cinema francês influência para o mundo inteiro. Amores, mulheres, a infância no ‘entre-guerras’, o espírito humano em rebeldia contra as formas consagradas & carcomidas de interação social, sexualidade, desejo, entre tantos outros temas, povoaram vários filmes desse período.
Exceto pela gritante falha de terem deixado Louis Malle do lado de fora da tertúlia, a “Nouvelle Vague” é, até hoje, um dínamo combatente contra a perda das sutilezas. Nesses dias ásperos onde um estilo musical como o Sertanejo pode ser ‘universitário’, mas caminha a passos largos para sua redução em ‘sertanejo ensino médio’, “madureza”, ‘supletivo’ ou até mesmo ‘sertanejo telecurso’, esse antídoto das mensagens frias costuma fazer um belo estrago. Se esses cineastas ainda estivessem vivos, o pau estaria cantando em cima de todas essas ‘estrelas da baixa fidelidade’ lindamente.
Dos vários nomes da “Nouvelle Vague”, o de François Truffaut foi o que apresentou belo devir entre 1958 até 1984, ano de sua passagem. Truffaut saiu da mera crítica ‘dos costumes’ e se aprofundou nas sutilezas & sobressaltos do comportamento humano. Nada mais atual.
Reza a lenda que seu derradeiro foi o filme “Vivement Dimanche!” (“De Repente, num Domingo”), de 1983. Dois anos antes, o resultado de suas análises, vivências e constatações de como um cérebro (órgão do corpo humano, físico) em mau funcionamento pode terminar em tragédia foi catalisado em sua grande obra “La Femme d’à Côté” (“A Mulher ao Lado”), de 1981.
É óbvio que o filme pode sofrer, como tem sofrido, diversas análises a partir da diversidade de abordagens que essa obra permite. Contudo, além de uma cinematografia perfeita pela qualidade do registro da luz e pelas opções de visualizar a quebra da dignidade através de portas e janelas, o enquadramento de Truffaut está estreitamente relacionado aos níveis de psicose que um ser humano pode atingir.
Sem querer fazer qualquer ‘spoiler’ do filme, “La Femme d’à Côté” narra o reencontro de dois amantes após oito anos. Mathilde Bouchard (intepretada pela monumental Fanny Ardant) vai morar com o marido Philippe Bouchard (Henri Garcin) ao lado da residência do antigo “affair” Bernard Coudray (interpretado pelo, então, jovem e promissor Gérard Depardieu) e sua mulher Arlette Coudray (Michèle Baumgartner). Esse segundo casal tem um filho de cinco anos, Thomas Coudray (Olivier Becquaert).
Os casais se tornam bons vizinhos e grandes amigos. Aos poucos, uma ginástica extraterrestre de Mathilde e Bernard para esconder de seus cônjuges o romance psiquiátrico que ambos tiveram.
No início, aquele discursinho do “... deixa disso...”, “... ele(a) arruinou oito anos da minha vida...”, “... não tem nada a ver...” e assim por diante. Com a sucessão de encontros amorosos entre os antigos amantes, a coisa começa a ficar esquisita: ‘forçação’ de barra, dedo na cara, gritaria, “bas fond”, pancadaria num churrasco, ciúme sem nexo, invasão de privacidade... um troço!
A riqueza de Truffaut em “A Mulher do Lado” é que ele nega (em sua crítica) essa historieta de “paixão avassaladora” que muito habitou o romantismo latino dos franceses: o que se vê é como um avançado estado de desordem psiquiátrica, geralmente vista como “normal”, pode botar abaixo o que seria um bem sucedido ‘feliz acidente’ de um gostoso encontro amoroso.
O cineasta francês, infelizmente, não tinha em 1981 a nomenclatura absolutamente desenvolta que a psiquiatria e a neurologia apresentam 37 anos depois: grande depressão, distimia, ciclotimia, bipolaridade (tipos 1 & 2), triciclotimia, esquizofrenia, “borderline”, Síndrome de Burnout, entre várias.
É visível, nesse filme, a cabeça ‘batendo no teto’ quando Mathilde, depois de saber que Bernard superou a má-fase e está de ‘vento-em-popa’ com a esposa, dá um tremendo “crash” através de uma incontrolável crise nervosa e vai parar numa clínica psiquiátrica. Durante a internação, seu marido, Philippe, apenas resume o tamanho do paquiderme como uma singela ‘depressão emocional’.
Fica para lá de evidente que Truffaut estava brilhantemente no caminho certo, mas com as ferramentas disponíveis naquele ano. Evidente, no filme, que muito desses amores mal resolvidos, romances que embocam no que há de mais baixo em agressividade e violência, são nada mais do que manifestações de uma interação nociva provocada por um órgão do corpo humano que não anda funcionando bem: o cérebro.
Na tese de Truffaut em “A Mulher do Lado”, Mathilde e Bernard são acossados por uma possessividade e virulência que já não se trata do batido ‘gostar demais’: não há sexualidade, nem tampouco os ‘caminhos do desejo’. O que há é um avanço de soberania sobre o(a) outro(a) como posse e colonização: não há uma justaposição de itinerários, onde um enriquece o outro, mas uma estranha vontade de controle de quaisquer aspectos que tenham formado as características do(a) parceiro(a).
A falência do cérebro (como órgão do corpo humano!). Simplesmente.
A perturbação que toma o(a) espectador(a) da metade para o fim do filme denota bem o tipo de interferência absurdamente negativa que um belíssimo distúrbio psiquiátrico causa na vida de quem a gente sequer imagina. Afeta muito, em grau, extensão e número que é de dar medo.
Um troço nada agradável. Para terminar do jeito que termina. Mas, aí, começa o ‘spoiler’: é melhor o(a) querido(a) freguês(a) assistir ao filme.
De qualquer forma, a denúncia de Truffaut é digna: ele, em 1981, já indicava: “... isso aí será insuportável num futuro próximo. E bem endêmico... não haverá qualquer lar nos próximos 30 anos que escapará desse tipo de sinergia macabra”.
Dito e feito! É o que mais a gente encontra por aí, nas ruas, nas nossas próprias casas, nos encontros, diluído até em letras de algum ‘sertanejo madureza’ singrando as ondas do rádio. Ficou normal ser agressivo(a), escancaradamente agressivo(a). É o mal sem sua mecânica, em estado-bruto. Um ambiente já cantado, literalmente, também pelo genial Morrissey em seu “Heaven Knows I’m Miserable Now”: “(...) what she asked me/At the end of the day/ Caligula would have blushed (...)”.
E viva Truffaut!!!

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

1 comment:

  1. Puxa, que beleza de análise. Deixou-me muito curioso pra assistir a fita. Vou fazer isso.

    ReplyDelete