Tuesday, February 27, 2018

POESIA POSSÍVEL - ARMANDO FREITAS FILHO #3

POEMA 100

Da casa dos três dígitos
não saio mais. Trinco.
Dia após dia de prisão
na cidade em carne viva.
Entre em si para sempre:
tendo de seu, apenas o bodum
ranzinza do corpo
que vai se resignando
a não perseguir o inominável
nem a se persignar


Armando Freitas Filho nasceu na cidade
do Rio de Janeiro em 1940.
Jornalista de profissão, começou a escrever
poesia a sério em 1960.
Trabalhou com Estudos e Pesquisas Literárias
no MEC e na FUNARTE entre 1974 e 1994.
Modernista fortemente influenciado por
Bandeira, Drummond e João Cabral,
Armando faz versos repletos de imagens impactantes.
Segue ativo publicando uma nova coleção
de poemas a cada 3 anos.
Em 1986 recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia
por seu livro "3x4",
mas sua obra-prima indiscutível é "Lar,"
publicado pela Companhia das Letras
e grande vencedor do Prêmio
Portugal Telecom de Literatura de 2011.
Seus poemas escritos entre 1960 e 2000
estão reunidos num volume indispensável
intitulado "Máquina de Escrever",
publicado em 2003 pela Nova Fronteira.




FALA, RAUL! (uma entrevista póstuma com Raul Seixas extraída do Blog do Jiló)



Hoje a nossa entrevista é com um dos maiores malucos da história.

Aquele que é considerado no Brasil o pai do rock e criador da “Sociedade Alternativa”… tão alternativa que nunca chegou a existir.

Com vocês, o maluco beleza Raul Seixas.


BJ – Raul, alguns músicos, produtores e amigos seus costumam dizer que você, apesar de maluco, era um sujeito muito inteligente. Mas eu dei uma fuçada na sua história e descobri que você repetiu 5 vezes o sétimo ano do Ensino Fundamental. É verdade isso?

RS – Que porra é essa de sétimo ano do Ensino Fundamental?

BJ – Desculpe. Na sua época equivalia ao segundo ano do ginásio. É verdade que você repetiu 5 vezes esse ano?

RS – Cinco vezes? Tem certeza disso? Eu achei que era menos. (risos) Rapaaaaaazzz, vou ser sincero com você. A escola não me ensinou nada. Ela não me dizia nada do que eu queria saber. Tudo o que eu aprendi foi em casa, na rua e nos livros. Em casa, eu aprendi a respeitar… na rua, aprendi a me virar… e nos livros, aprendi a sonhar. Deu nisso aqui, ó... (apontando pra ele mesmo) Raulzito.


BJ – Pois é, dizem também que você não se esforçava nos estudos porque só queria saber de cantar e tocar rock, gênero musical que ainda engatinhava no país. Raul, conte pra gente como você começou sua carreira.

RS – Engatinhava, não. Ninguém ligava pro rock no final dos anos 50. Só eu e uns malucos espalhados por aí (risos). A gente ouvia Elvis, Little Richards, Chuck Berry. Só que eu curtia também Luiz Gonzaga, essas foram minhas influências. Eu comecei em 1963… ou foi em 62? Rapaaazz, eu acho que foi mesmo em 61. Não importa. Nessa época aí eu tive uma banda chamada Relâmpagos do Rock. Na verdade ela teve vários nomes. Um deles foi… porra, bicho, não lembro. Foi com os irmãos Thildo Gama e Décio. Ou era Délcio? Não sei. Mas em 63 eu me juntei com o Mariano, o Eládio e o… porra, me fugiu agora… ah, o Calerba. E a gente formou os Panteras. Que antes foi The Panters. Uma confusão da porra, né. Em 67, eu me formei no colégio, fiz cursinho e passei em Direito, Psicologia e Filosofia… só pra calar a boca de quem falava que eu era burro e não estudava. Aí eu casei com a Edith e fui pro Rio de Janeiro tentar a sorte.


BJ – É verdade que você passou fome no Rio?

RS – Rapaaaazz, passei mesmo. Mas foi só um período que o bicho pegou e que a gente teve que lavar uns pratos num boteco pé sujo de Copacabana pra ganhar um sanduíche pra cada um. Na verdade, a gente foi pro Rio porque o Jerry Adriani convidou o Raulzito e os Panteras pra ser banda de apoio dele tocando em alguns shows e gravando umas coisinhas. Pouca gente sabe, mas o maior sucesso do Jerry Adriani, Doce Doce Amor, é composição minha. Mas a bufunfa que eu ganhava era pequena, só dava pra pagar o cafofo. (risada tímida).

BJ – Foi quando você virou produtor?

RS – Exatamente. Foi em 1972. Não, nada disso. Acho que foi em 70. É… em 1970. Mas eu não tenho muita certeza não. O Jerry que mais uma vez me quebrou o galho. Ele convenceu o Evandro, que era presidente da CBS, a me dar esse emprego de produtor. E eu acabei me dando bem. Se tinha uma coisa que eu conhecia era música, porra. Eu produzi muita gente na época. Produzi o Renato & Seus Blue Caps, o Leno, o Trio Ternura, Tony & Frankie, a Diana, o Oswaldo Nunes… vocês podem não conhecer muito essa galera, mas na época eles arrebentavam, vendiam disco “pra caralho”…. eita, desculpe aí. Produzi também o próprio Jerry Adriani e aquele cara famoso pacas… como é mesmo o nome dele?…


BJ – O período mais produtivo de sua carreira talvez tenha sido de 72 a 74, quando músicas como Mosca na Sopa, Metamorfose Ambulante, Al Capone, Ouro de Tolo, Medo da Chuva, Gitá e Sociedade Alternativa foram compostas. Aliás, esse foi o período em que você conheceu Paulo Coelho, se envolveu com o ocultismo e criou a Sociedade Alternativa. Conte um pouco sobre essa época.

RS – Rapaaaazzz. Você que tá dizendo que foi tudo nessa época. Mas deve ter sido por aí mesmo. Eu lembro que foi uma época boa mesmo. E essas músicas todas aí realmente são muito boas também. Não lembro a letra de todas não, mas sei que são ótimas. Acho que algumas até são letras do Paulo. Essa coisa da Sociedade Alternativa era uma viagem que a gente levou muito a sério nesse período. Quando eu conheci Paulo Coelho, ele escrevia uns textos sobre discos voadores e tal. E eu também tinha essa pegada mística, lia muito sobre ocultismo. A minha história com o Paulo foi meio que sintonia à primeira vista. Depois eu acabei caindo na real e percebi que ele era meio xarope, se achava o cara.


BJ – Não sei se você sabe, mas depois que você morreu, o Paulo Coelho deu uma entrevista dizendo que na década de 70 vocês dois ficavam rivalizando pra ver quem era mais famoso. Que as letras que ele fazia eram tão ou mais importantes do que a sua música. O que você acha disso?

RS – Esse Paulo Coelho é mesmo um idiota. Eu soube sim que ele ficou famoso escrevendo esses livros ainda mais idiotas do que ele. Que otário! Mas… voltando ao assunto: na época ele era um “ilustre desconhecido” (gargalhada) Se não fosse pela parceria que fez comigo, eu acho que ele não conseguiria vender livro nenhum hoje. Na verdade rolava mesmo uma disputa entre a gente. Mas era uma disputa cultural… pra ver quem sabia mais. E era saudável. A gente se dava bem. Até a polícia federal dar uns choques nos nossos bagos… aí a coisa começou a desandar.

BJ – Você foi mesmo torturado pela ditadura?

RS – Que papo é esse de “dita dura”? Lá ele! (gargalhadas) Brincadeira, meu velho. Esse assunto é sério. Me fodi nas mãos desses escrotos da federal. Eu e o Paulo. Os caras acharam que a Sociedade Alternativa era uma sociedade comunista… que era um movimento armado contra o governo… e desceram a porrada na gente. Fui fugido pros Estados Unidos. Morei lá um bom tempo. Não lembro exatamente quanto tempo, mas foi bastante. Quer dizer, acho que nem tanto. Minha primeira mulher era americana, a Edith. A gente morou na casa dos pais dela.


BJ – É verdade que você comeu lixo em Nova Iorque?

RS – (gargalhada) É verdade sim, mas dessa vez não foi porque eu não tinha grana. Eu já era um artista famoso e ganhava muito dinheiro com direitos autorais e shows. O que aconteceu foi o seguinte: eu tava andando de noite por Nova Iorque quando entrei sem querer num beco. E tinha um palhaço na sarjeta comendo lixo. Um palhaço mesmo… um mendigo vestido de palhaço… coisas de Nova Iorque. E ele me convidou pra comer o lixo com ele. E eu aceitei.

BJ – Você comeu lixo?

RS – Comi sim. O lixo americano é bem mais saudável, tem uma porção de coisas boas.


BJ – Uma coisa que você também não deve saber é que depois de morto suas músicas continuaram tocando por muito tempo. Aliás, tocam até hoje. E o mais interessante é que foi criada uma expressão com o seu nome: é o “Toca Raul”… que é muito usada pelo público em shows quando as pessoas não estão gostando muito das músicas e pedem pra que a banda que está se apresentando toque alguma música sua. Por isso, a expressão “Toca Raul”. Você sabia disso?

RS – Rapaaaaazz, que galera doida é essa. Como pode pedir música de outro artista num show? Bom, mas isso é sinal de que a minha música é boa… por isso as pessoas pedem. Mas eu vou te dizer uma coisa. Isso também já aconteceu comigo, sabia. Eu tava tocando num bar de São Paulo e um cara da plateia pediu pra tocar um rock de um outro músico. Ele levantou e gritou TOCA… Só que eu não lembro quem era o músico. Porra, não lembro mesmo.


BJ – Posso fazer um bate bola rápido com você?

RS – Pode

BJ – Uma cor

RS – Vermelho! Quer dizer, azul

BJ – Uma fruta

RS – Mangaba. Se bem que faz tempo que não como e eu não lembro muito do sabor

BJ – Um livro

RS – O Livro da Lei, do guru Aleister Crowley

BJ – Uma comida

RS – Maniçoba

BJ – Uma inspiração

RS – Luiz Gonzaga

BJ – Uma lembrança

RS – Peraí… tá difícil


JILÓ é aquele sujeito
que todo mundo queria ser:
fala as coisas na lata,
sem medo e sem vergonha.
Tem um temperamento
que oscila o dia inteiro:
às vezes é doce
como um doce de jiló...
e em outras, amargo
como um jiló sem doce.
Divertido, crítico e polêmico,
JILÓ promete dar
um tempero especial
nas suas tardes
de segunda a sexta.
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LEMBRA QUE O SONO É SAGRADO (por Germano Quaresma)



A falta de sexo, para Falópio, resultava numa insônia escruciante. Ele padecia de um priapismo crônico, e por tal razão passava os dias se arrastando, consequência das noites despertas.

Não é que a rigidez peniana o impedisse de dormir, afinal todo homem, mesmo os impotentes, acordam em ereção. Verdade que a primeira urina leva a dureza embora, é o que o populacho, em demonstração de seu insuperável mau gosto, denomina "tesão de mijo". Falópio dormiria com seu phallus erectus não fosse o não menos rígido colchão ortopédico em que deitava, forçado por sua coluna sentimental.

Ele se recolhia cedo, e logo a lembrança cívica das namoradas de antanho o assomava, fazendo o mastro erguer-se sem bandeira. Falópio usava dormir de bruços, mas o atrito do membro face à tábua do colchão o despertava.

Foi quando o psiquiatra o aconselhou a dormir de lado. Deu certo até o ingresso no território da vigília. Uma vez dormido, a primeira mudança involuntária de lado o fazia despertar, o membro batendo contra o colchão feito uma cancela de pedágio que não se ergueu e barrou o coche.

Como derradeira tentativa, esgotados os modos esquerda, direita e bruços, ou leste, oeste e sul, Falópio enxergou um norte na bússola da esperança: podia tentar dormir de barriga para cima.

Ele se deitou na noite quente, ligou o ar condicionado, cobriu-se de edredom macio e sentiu num torpor que poderia assim, rosto pro céu mirando Deus, entregar-se à volúpia de um sono restaurador. Foi indo, bobinho, entrando nos limites de Morfeu. Ao longe a lembrança de Váguina, sua namorada, o nome era isso, feminino de Váguiner segundo sua sogra. Ele a amava.

Lembrando o corpo nu de Váguina, seus seios esfregados contra a poça de sêmen que lhe brotava da glande, Falópio sofreu ereção brutal, e relaxou mais ainda. Teria dormido feito uma criança se o caralho, duro feito um diamante, não tivesse erguido o edredom, descobrindo-lhe os pés, que ficaram expostos ao frio do ar condicionado.




Germano Quaresma, ou Manuel Herzog,
nasceu em Santos, São Paulo, em 1964.
Criado na cidade de Cubatão,
trabalhou na indústria química
e formou-se em Direito.
Estreou na literatura em 1987
com os poemas de "Brincadeira Surrealista".
É autor dos romances
"A Jaca do Cemitério É Mais Doce" (2017),
"Dec(ad)ência" (2016), "O Evangelista" (2015)
e "Companhia Brasileira de Alquimia" (2013),
além dos livros de poemas
"6 Sonetos D’amor em Branco e Preto" (2016)
e "A Comédia de Alissia Bloom" (2014)



EDUARDO CAVALCANTI SAÚDA "LIFE IN 12 BARS", DOCUMENTÁRIO SOBRE ERIC CLAPTON, EM PRÓXIMA PARADA





Eduardo Rubi Cavalcanti
é jornalista desde a década de 80.
Trabalhou em A TRIBUNA de Santos
e em várias outras publicações. 
É Mestre em Comunicação Social
pela Universidade Metodista de São Paulo
e leciona Jornalismo na Unisantos,
onde cursou sua graduação.
Publica domingo sim, domingo não,
em A TRIBUNA de Santos,
a página PRÓXIMA PARADA,
que reproduzimos aqui.


O RAY-BAN (por Carlão Bittencourt)


"É muito difícil saber não trabalhar”
(Jorginho Guinle)



Bóris Fetcher teve várias profissões antes de se decidir por criar anúncios. Muitas. Até mesmo dono de circo. Mas era, antes de tudo, um grande redator. Na opinião de muita gente de peso, como Noé Sandino, Tom Figueiredo e Bjarn Norking, ele foi o melhor de sua geração.




Bóris era mesmo brilhante. E não só na propaganda.



Nascido na Rússia, rodou o mundo até vir morar na aprazível Vila Sonia, bairro popular na periferia de São Paulo. Essa incrível trajetória foi sua escola de vida, seu curso superior. Um P.H.D. em política de boa vizinhança, muito sereno e jogo de cintura.



Inteligente, culto, rápido no gatilho, Bóris falava várias línguas. Mas conhecia mesmo era a língua do povo, grande segredo do seu sucesso como redator. Fosse qual fosse o veículo de comunicação, ele sabia como poucos falar a língua do homem comum.



Era também um gozador. Um brincalhão nato, escondido atrás dos cabelos brancos, dos olhos azuis e dos óculos pesados. Tinha o senso de humor aguçado, sempre pronto para uma sacada rápida, de matar de rir quem estivesse presente. Bóris, porém, nem imaginava que a próxima vítima de uma piada seria ele.



Foi no começo dos anos 70, na melhor agência paulista da época, a Almap (Alcântara Machado, Periscinoto Comunicação). Um dos clientes da filial carioca recusou pela enésima vez uma campanha. Resultado: lá se foi Bóris, a toque de caixa, trabalhar uma semana no Rio de Janeiro para apagar aquela fogueira.



Na pressa da partida, viajou sem levar seus indefectíveis óculos escuros. Estava desarmado. Mas percebeu assim que desceu do avião. Alto verão, a temperatura decretava 40 graus, à sombra. O sol ardia na pele e nas retinas.



Bóris sentiu a barra: não poderia encarar o astro-rei sem um tira lombra de raça. Precisava passar numa ótica. Ou num camelô. O que visse primeiro. Deu sorte. Do lado do hotel, em Copacabana, tinha uma. Entrou na loja.



Escolhe daqui, experimenta dali, acabou levando um Ray-Ban clássico, de lentes verdes escuras e armação dourada. Só não gostou do preço: os olhos da cara. Mas fechou negócio.



Ao sair da loja era outro homem. Estava tão feliz com sua nova aquisição, que resolveu atravessar a rua e dar uma volta pelo calçadão da orla.



Na esquina, parou junto ao meio-fio, na faixa de pedestres. Ficou esperando o sinal fechar. Nisso, veio passando o lotação. Bóris nem notou o braço se esticando para fora de uma das janelas do coletivo. Vapt, vupt!



Num passe de mágica, o lanceiro puxou os óculos sem sequer tocar em seu rosto. Com mão de gato, delicadamente. Uma obra de arte da rapinagem urbana.



Atônito junto à beira da calçada, e meio tonto com a luz do sol, Bóris só se deu conta do acontecido, quando viu o ônibus indo embora com seu ex-óculos escuros novinho.



Sorrindo, com o Ray-Ban novinho na cara, tronco para fora da janela, o malandro mandou a gozação, no mais legítimo sotaque carioca:



“Abre o olho, paulisssssta!!!”



Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as terças
em LEVA UM CASAQUINHO.


Saturday, February 24, 2018

"CATEDRAL", um conto de Raymond Carver


CATEDRAL

Raymond Carver


Aquele cego, um velho amigo da minha mulher, ia chegar para passar a noite em nossa casa. A mulher dele tinha morrido. Por isso ele estava visitando os parentes da sua falecida mulher que moravam em Connecticut. Ele telefonou para a minha mulher, da casa dos parentes da mulher dele. Ficou tudo combinado. Ele ia chegar de trem, uma viagem de cinco horas, e minha mulher ia encontrá-lo na estação. Ela não o via desde o verão em que tinha trabalhado para ele, dez anos atrás, em Seattle. Mas ela e o cego mantiveram contato. Gravavam fitas e mandavam um para o outro pelo correio. A visita dele não me deixou nem um pouco entusiasmado. Não era nem de longe um conhecido meu. E o fato de ser cego me incomodava. A ideia que eu tinha da cegueira vinha do cinema, cegos se movimentavam devagar e nunca riam. As vezes eram conduzidos por cães-guia. Um cego na minha casa não era uma coisa que eu pudesse aguardar com grande expectativa.

Naquele verão em Seattle, ela andava atrás de trabalho. Estava sem dinheiro. O homem com quem ia se casar no final do verão estava na Escola de Oficiais da Aeronáutica. Ele também não tinha dinheiro. Mas ela estava apaixonada pelo cara, e ele por ela etc. Ela viu um anuncio no jornal: necessita-se de ajuda — Leitura para um cego, e um numero de telefone. Ela telefonou, foi ate lá e acabou contratada na hora. Trabalhou para o tal cego durante todo o verão. Lia muita coisa para ele, casos reais, reportagens, coisas assim. Ajudou o cego a organizar seu pequeno escritório no departamento de serviço social do município. Ficaram amigos, minha mulher e o cego. Como sei dessas coisas? Ela me contou. E me contou outra coisa também. No seu último dia no escritório do cego, ele perguntou se podia tocar no rosto dela. Minha mulher concordou. Contou que os dedos dele tocaram em todas as partes do seu rosto, o nariz — até o pescoço! Ela nunca esqueceu. Tentou até escrever um poema sobre isso. Vivia tentando escrever um poema. Escrevia um ou dois poemas por ano, em geral depois de alguma coisa realmente importante ter acontecido com ela.

Quando começamos a sair, ela me mostrou o poema. No poema, ela lembrava os dedos dele e a maneira como se moveram pelo seu rosto. No poema, ela falava do que sentiu na hora, do que passou pelo seu pensamento quando o cego tocou seu nariz e seus lábios. Lembro que não achei o poema grande coisa. Claro, não falei para ela. Vai ver que eu não entendo de poesia, só isso. Reconheço que poesia não e a primeira coisa que procuro quando vou pegar um livro para ler.

Mas, como eu ia dizendo, o tal homem que foi o primeiro a desfrutar os favores dela, o candidato a oficial, tinha sido seu namoradinho dos tempos de menina. Tudo bem. O que estou dizendo é que no fim do verão ela deixou o cego passar as mãos no rosto dela, se despediu dele, casou com o namorado dos tempos de menina, que então já era um oficial, e foi embora de Seattle. Mas os dois mantiveram contato, ela e o cego. Foi ela quem fez o primeiro contato, depois de mais ou menos um ano. Telefonou para ele à noite, de uma base aérea do Alabama. Queria conversar. Os dois conversaram. Ele pediu que ela mandasse uma fita gravada pelo correio contando como estava a sua vida. Ela fez isso. Mandou a fita. Na fita, contava a respeito do marido e da vida dos dois nas Forças Armadas. Contou ao cego que amava o marido, mas que não gostava do lugar onde moravam, e que não gostava de fazer parte da indústria militar. Contou ao cego que tinha escrito um poema e que ele, o cego, estava no poema. Contou que estava escrevendo um poema sobre como era a vida de uma esposa de um oficial da Força Aérea. O poema não estava pronto. Ela ainda estava escrevendo. O cego gravou uma fita. Mandou a fita para ela. Ela gravou uma fita. Isso continuou durante anos. O oficial da minha mulher vivia sendo transferido de base. Ela mandou fitas de bases em Moody, McGuire, McConnell e por fim Travis, perto de Sacramento, onde certa noite se sentiu solitária e triste por viver perdendo os amigos que fazia naquela vida de se mudar a toda hora de um lugar para o outro. Teve a sensação de que não ia mais conseguir viver assim. Engoliu todas as pílulas e comprimidos que estavam no armário de remédios e ainda por cima bebeu uma garrafa de gim para ajudar a mandar tudo para dentro. Depois foi tomar um banho quente e apagou.

Mas, em vez de morrer, ela ficou doente. Vomitou. O seu oficial — por que ele precisaria ter um nome? Era o namoradinho de infância dela, o que mais ele quer? — chegou em casa vindo de não sei onde, achou a mulher e chamou uma ambulância. Mais tarde, ela contou tudo isso numa fita e mandou para o cego. Com o correr dos anos, ela gravava todo tipo de coisa nas fitas e logo depois des­pachava pelo correio. Além de escrever um poema todos os anos, acho que esse era o seu principal passatempo. Numa fita, contou ao cego que tinha resolvido viver longe do seu oficial por um tempo. Em outra fita, falou para ele do seu divórcio. Eu e ela começamos a sair, e é claro que ela contou isso ao cego. Contava tudo a ele, pelo menos era o que me parecia. Uma vez me perguntou se eu não, gostaria de ouvir a ultima fita que o cego tinha mandado. Faz um ano. Eu estava na fita, disse ela. Respondi que tudo bem, ia escutar a fita, sim. Peguei bebidas para nós e nos instalamos na sala. Nos preparamos para escutar. Primeiro ela colocou a fita no toca-fitas e regulou uns botões. Depois puxou uma alavanca. A fita deu um guincho e alguém começou a falar com uma voz muito alta. Ela baixou o volume. Depois de alguns minutos de um papo-furado inofensivo, ouvi meu nome na boca daquele desconhecido, o cego que eu nem sequer conhecia! E depois isto: “De tudo o que você disse sobre ele, só posso concluir...”. Mas fomos interrompidos, bateram na porta, ou alguma outra coisa, e nunca mais voltamos a ouvir a fita. Pode ser que tenha sido melhor assim. Já tinha ouvido tudo o que eu queria ouvir.

Agora aquele mesmo cego estava vindo dormir na minha casa.

“Talvez eu possa levar o seu amigo para jogar boliche”, falei para minha mulher. Ela estava na pia cortando batatas. Baixou a faca que estava usando e se virou para mim.

“Se você me ama”, disse, “faça isso por mim. Se não me ama, tudo bem. Mas se você tivesse um amigo, qualquer amigo, e esse amigo viesse visitar você, eu ia fazer de tudo para ele se sentir à vontade.” Limpou as mãos com o pano de prato.

“Não tenho nenhum amigo cego”, falei.

“Você não tem amigo nenhum”, disse ela. “Ponto-final. Além disso”, emendou, "puxa vida, a mulher dele acabou de morrer! Será que você não entende? O homem acabou de perder a mulher!”

Não respondi. Ela me falou um pouco mais sobre a mulher do cego. O nome dela era Beulah. Beulah! Isso é nome de mulher de cor.

“A mulher dele era crioula?”, perguntei.

“Você esta maluco?”, disse minha mulher. "Será que você pirou de vez?” Pegou uma batata. Vi a batata bater no chão e depois rolar para baixo do fogão. O que e que você tem?”, perguntou. “Esta embriagado ou o que?”

“Estou só perguntando”, falei.

Minha mulher logo despejou em cima de mim muito mais detalhes do que eu queria saber. Preparei uma bebida e sentei junto a mesa da cozinha para escutar. Pedaços daquela historia começaram a se encaixar.

Beulah tinha ido trabalhar para o cego no verão, depois que minha mulher havia deixado de trabalhar para ele. Não demorou muito, Beulah e o cego casaram na igreja. Foi um casamento pequeno — afinal, quem ia querer ir a um casamento daqueles? —, só os dois mais o pastor e a mulher do pastor. Mas, para todos os efeitos, foi um casamento na igreja. Era o que Beulah queria, disse ele. Mas já naquele tempo Beulah devia estar com câncer nas glândulas. Depois de viverem inseparáveis durante oito anos — palavra da minha mulher, inseparáveis —, a saúde de Beulah entrou em rápido declínio. Morreu num quarto de hospital em Seattle, o cego sentado ao lado da cama, segurando a mão dela. Casaram, moravam e trabalhavam juntos, dormiam juntos — faziam sexo, claro — e depois o cego teve de enterrar a mulher. Tudo isso sem ele jamais ter visto que aspecto tinha o raio da mulher. Era uma coisa além da minha compreensão. Ao ouvir aquilo, tive um pouquinho de pena do cego. Depois me vi pensando na vida lamentável que aquela mulher devia ter tido. Imagine uma mulher que nunca podia se ver como era vista pelos olhos do homem que amava. Uma mulher que vivia dia apos dia sem nunca receber um elogio do seu amado. Uma mulher cujo marido nunca ia poder ver a expressão do rosto dela, fosse de angustia ou de alguma coisa melhor. Alguém que podia usar maquiagem ou não usar — que diferença faria para ele? Se quisesse, ela poderia usar uma sombra verde em volta de um olho, um alfinete enfiado no nariz, calças amarelas folgadas e sapatos roxos, tanto fazia. E depois resvalar para a morte, a mão do cego segurando sua mão, os olhos cegos dele cheios de lagrimas — imagino agora — e o ultimo pensamento da mulher podia ser este: ele nunca soube como era o aspecto dela de verdade, e lá ia a mulher num trem expresso direto para a sepultura. Robert ficou com uma pequena apólice de seguro e metade de uma moeda de vinte pesos mexicanos. A outra metade da moeda ficou no caixão com ela. Patético.

Então, quando chegou a hora marcada, minha mulher foi a estação pegar o cego. Sem nada mais para fazer a não ser esperar — claro, pus a culpa nele por isso —, eu estava tomando um drinque e vendo teve quando ouvi o carro parar na entrada. Levantei do sofá com a bebida na mão e fui ate a janela dar uma olhada.

Vi minha mulher rindo enquanto estacionava o carro. Vi minha mulher sair do carro e fechar a porta. Ainda estava sorrindo. Era espantoso. Deu a volta para o outro lado do veículo, onde estava o cego, que já começava a sair do carro. O cego, imagine só, tinha uma barba enorme! Uma barba num cego! É demais, francamente. O cego esticou o braço para o banco traseiro e puxou uma mala. Minha mulher amparou o homem pelo braço, fechou a porta do carro e, falando por todo o caminho, conduziu o cego pela entrada e depois pela escadinha da varanda. Desliguei a televisão. Terminei minha bebida, lavei o copo, enxuguei as mãos. Depois fui até a porta.

Minha mulher disse: “Quero te apresentar o Robert. Robert, esse e o meu marido. Já contei a você tudo sobre ele”. Ela sorria radiante. Segurava o cego pela manga do paletó.

O cego largou sua mala e estendeu a mão.

Apertei a mão. Ele apertou com força, ficou segurando um pouco minha mão e depois soltou.

“Tenho a sensação de que já nos conhecemos”, falou com seu vozeirão.

“Eu também”, respondi. Não sabia o que mais eu podia dizer. Depois falei: "Seja bem-vindo. Ouvi falar muito de você”. Então começamos a andar, um pequeno grupo, da varanda para a sala, e minha mulher o guiava pelo braço. O cego levava sua mala na outra mão. Minha mulher ia dizendo coisas como: “Para a esquerda agora, Robert. Isso mesmo. Agora cuidado, tem uma cadeira. Isso. Sente ai. E o sofá. Compramos esse sofá há duas semanas”.

Eu ia começar a dizer alguma coisa sobre o sofá velho. Eu gostava daquele sofá velho. Mas não falei nada. Depois quis falar alguma outra coisa, puxar um papo a toa, falar da paisagem pitoresca que a gente vê quando viaja de trem pela beira do rio Hudson. Queria falar como é que, quando a gente viaja para Nova York deve sentar no lado direito do trem e quando a gente vem de Nova York deve sentar no lado esquerdo.

Fez boa viagem?”, perguntei. “Por falar nisso, de que lado do trem você sentou?"

Que pergunta, de que lado do trem!”, disse minha mulher. "Que importância tem o lado?”, exclamou.

Eu só perguntei”, respondi.

No lado direito”, disse o cego. “Fazia quase quarenta anos que eu não andava de trem. Desde que eu era criança. Com minha família. Já faz muito tempo. Tinha quase esquecido a sensação. Agora estou com o inverno na minha barba”, disse. "Afinal, envelheci. Estou com um ar distinto, minha querida?”, perguntou à minha mulher.

"Esta com um ar distinto sim, Robert”, respondeu ela. “Robert”, disse. “Robert como é bom ver você.”

Minha mulher finalmente tirou os olhos do cego e olhou para mim. Tive a sensação de que não gostou do que viu. Encolhi os ombros.

Eu nunca tinha encontrado, nem conhecido pessoalmente, alguém cego. Aquele cego era um homem à beira dos cinquenta anos, corpulento, meio careca, de ombros curvados, como se carregasse ali um grande peso. Usava calças marrons, sapatos marrons, camisa marrom-clara, gravata, paletó esporte. Arrumadinho. Além disso tinha aquela barba grande. Mas não usava bengala nem óculos escuros. Sempre pensei que óculos escuros fossem uma obrigação para os cegos. O fato é que eu preferia que ele usasse óculos escuros. À primeira vista, os olhos dele pareciam iguais aos de qualquer pessoa. Mas se a gente prestasse atenção havia uma coisa diferente neles. Para começar, tinha branco demais na íris e as pupilas pareciam se mexer nas orbitas dos olhos sem que ele soubesse ou que fosse capaz de impedir. Sinistro. Quando olhei com atenção para aquela cara, vi a pupila esquerda virar na direção do nariz, enquanto a outra fazia um esforço para continuar no lugar. Mas era só um esforço, pois aquele olho passeava para tudo quanto era lado, sem que ele soubesse ou quisesse aquilo.

Falei: “Vou servir um drinque para você. O que prefere? Temos um pouco de tudo. E um de nossos passatempos”.

“Meu camarada, sou um homem do uísque”, respondeu bem depressa com sua voz cheia.

“Muito bem”, falei. “Você é dos meus! Logo vi que era.”

Deixou os dedos tocarem sua mala, que estava no chão ao lado do sofá. Ele estava conferindo suas coordenadas. Não o censurei por isso.

“Vou levar a mala para o seu quarto”, disse minha mulher.

“Não, esta bem assim", respondeu o cego em voz alta. “Ela pode subir junto comigo.”

“Um pouco de agua no uísque?”, perguntei.

“Muito pouca”, respondeu.

"Eu sabia”, falei.

Ele disse: “Só um pingo. Aquele ator irlandês, Barry Fitzgerald, não é? Sou como ele. Quando bebo agua, disse Fitzgerald, bebo agua. Quando bebo uísque bebo uísque”. Minha mulher riu. O cego ergueu a mão por baixo da barba. Levantou a barba devagar e deixou-a cair.

Preparei as bebidas, três copos grandes de uísque com um borrifo de água. Então nos acomodamos confortavelmente e conversamos sobre as viagens de Robert. Primeiro o longo voo da Costa Leste até Connecticut. Cobrimos todo esse tema. Depois, de Connecticut até aqui de trem. Tomamos mais uma bebida para tratar dessa parte da viagem.

Lembrei que tinha lido em algum lugar que os cegos não fumavam porque, essa era a hipótese, não podiam ver a fumaça que exalavam. Eu achava que era isso e só isso que eu sabia sobre cegos. Mas aquele cego fumava seu cigarro até o fim e depois logo acendia outro. Aquele cego enchia o cinzeiro e minha mulher esvaziava.

Quando sentamos à mesa para jantar, pegamos mais uma bebida. Minha mulher encheu o prato de Robert até em cima com bife, batatas picadas e assadas e feijão verde. Passei manteiga em duas fatias de pão para ele. Falei: “Tome aqui um pão com manteiga para você”. Engoli um pouco da minha bebida. "Agora vamos rezar”, falei, e o cego baixou a cabeça. Minha mulher me olhou de boca aberta. “Vamos rezar para que o telefone não toque justamente agora e a gente tenha que comer comida fria”, falei.

Atacamos os pratos cheios de vontade. Comemos tudo o que havia para comer em cima da mesa. Comemos como se não fosse haver o dia seguinte. Não conversamos. Comemos. Raspamos o prato. Passamos o rodo naquela mesa. Estávamos ali para comer a serio. O cego localizou na mesma hora as suas comidas. sabia exatamente onde tudo estava no prato. Eu observava com admiração enquanto ele usava o garfo e a faca na sua comida. Cortou a carne em dois pedaços, espetou um no garfo e o levou à boca. depois avançou cheio de gás nas batatas assadas, depois no feijão e depois rasgou um pedaço de pão com manteiga e comeu. Tudo isso regado com um grande gole de leite. Também não parecia se importar muito em usar os dedos de vez em quando.

Liquidamos tudo, inclusive metade de uma torta de morango. Durante alguns momentos, ficamos parados, como que atordoados. O suor brilhava em nosso rosto. Por fim, levantamos da mesa e deixamos os pratos sujos. Nem olhamos para trás. Fomos para a sala e afundamos de novo em nossos lugares. Robert e minha mulher sentaram no sofá. Ocupei a poltrona grande. Tomamos mais duas ou três bebidas enquanto os dois conversavam sobre as coisas mais importantes que tinham acontecido com eles nos últimos dez anos. A maior parte do tempo só fiquei escutando. De vez em quando eu falava alguma coisa. Eu não queria que ele pensasse que eu tinha saído da sala, e eu não queria que ela pensasse que eu estava me sentindo excluído. Eles falaram de coisas que tinham acontecido — com eles! — nos últimos dez anos. Esperei em vão ouvir meu nome nos doces lábios da minha mulher: “E então meu querido marido entrou na minha vida” — algo assim. Mas não ouvi nada desse tipo. Falavam mais de Robert. Pelo jeito, Robert tinha feito um pouco de tudo, um cego que era um verdadeiro homem dos sete instrumentos. No entanto, mais recentemente, ele e a mulher tinham conseguido uma representação da empresa Amway, e assim, pelo que entendi, vinham ganhando a vida modestamente. O cego era também radioamador. Com aquela sua voz retumbante, falava de suas conversas com radioamadores em Guam, nas Filipinas, no Alasca e até no Taiti. Disse que teria uma porção de amigos a disposição se algum dia quisesse visitar aqueles lugares. De vez em quando, virava o rosto cego para mim, punha a mão embaixo da barba, me perguntava alguma coisa. Fazia quanto tempo que eu estava na minha atual posição? (Três anos.) Eu gostava do meu trabalho? (Não gostava.) Eu ia continuar no emprego? (Quais eram as opções?) Por fim, quando achei que ele estava começando a ficar cansado, levantei e liguei a televisão.

Minha mulher me olhou irritada. Estava a beira de explodir. Entoa olhou para o cego e disse: "Robert, você tem televisão?”.

O cego falou: “Minha querida, tenho dois televisores. Tenho um aparelho em cores e um preto e branco, uma relíquia. É engraçado, mas quando ligo a televisão, e estou sempre ligando a televisão, ligo o aparelho em cores. Engraçado, não acha?”.

Fiquei sem saber o que responder. Eu não tinha absolutamente nada para dizer. Nenhuma opinião. Então fiquei vendo o noticiário e tentei escutar o que o locutor dizia.

“Esse é um televisor em cores”, disse o cego. "Nao me pergunte como eu sei, mas sei.”

"A gente comprou faz pouco tempo”, falei.

O cego tomou mais um gole da sua bebida. Levantou a barba, cheirou-a e a deixou cair de novo. Inclinou-se para a frente no sofá. Colocou o cinzeiro na mesinha de centro, depois levou o isqueiro até seu cigarro. Recostou-se no sofá e cruzou as pernas na altura dos tornozelos.

Minha mulher cobriu a boca e depois bocejou. Espreguiçou-se. Falou: “Acho que vou subir e por o meu roupão. Acho que vou trocar de roupa. Robert, se ajeite da maneira mais confortável”, disse.

“Estou confortável”, respondeu o cego.

“Quero que você se sinta confortável nesta casa”, disse ela.

“Estou confortável”, disse o cego.

Depois que ela saiu da sala, eu e ele ficamos escutando a previsão do tempo e depois a cobertura esportiva. Nessa altura, já fazia tanto tempo que ela havia saído que eu não sabia mais se ela ia voltar. Achei que podia ter ido dormir. Torci para que ela descesse. Não queria ficar sozinho com um cego. Perguntei se ele não queria mais uma bebida e ele respondeu que sim, claro. Depois perguntei se não queria fumar maconha comigo. Eu falei que havia acabado de enrolar alguns. Eu não tinha feito isso, mas era o que eu pretendia fazer em seguida.

“Vou experimentar um pouco”, disse ele.

“Beleza”, falei. “E assim que se fala.”

Fui pegar nossos drinques e sentei no sofá com ele. Depois enrolei para nós dois baseados bem gorduchos. Acendi um e passei para ele. Coloquei entre seus dedos. Ele segurou e inalou.

“Prenda o ar o máximo que conseguir”, falei. Dava para ver que ele não entendia do assunto.

Minha mulher desceu vestindo o roupão cor-de-rosa e os chinelos cor-de-rosa.

“Que cheiro e esse?”, perguntou ela.

“A gente achou que podia fumar um pouco de cannabis”, respondi.

Minha mulher me lançou um olhar furioso. Depois olhou para o cego e disse: “Robert, eu não sabia que você fumava”.

Ele disse: ‘Agora fumo, minha querida. Para tudo há uma primeira vez. Mas ainda não estou sentindo nada”.

“Esta aqui é muito fraquinha”, falei. “É suave. É maconha para a gente continuar raciocinando”, falei. “Não confunde as ideias da gente.”

“Não mesmo, meu camarada”, disse ele, e riu.

Minha mulher sentou no sofá entre mim e o cego. Passei o baseado para ela, que pegou, deu uma tragada e passou de volta para mim. “Em que direção esta rodando?”, perguntou ela. Depois falou: “Eu não devia estar fumando isto. Mal consigo me manter de olhos abertos do jeito que já estou. Esse jantar acabou comigo. Não devia ter comido tanto”.

“Foi a torta de morango”, disse o cego. "Ela é que fez isto”, disse ele, e riu com sua gargalhada alta. Depois balançou a cabeça.

“Tem mais torta de morango”, falei.

"Quer mais, Robert?”, perguntou minha mulher.

“Talvez daqui a pouco”, respondeu.

Voltamos nossa atenção para a tevê. Minha mulher bocejou outra vez. Dis­se: “Quando você sentir vontade de ir dormir, sua cama já esta feita, Robert. Sei que deve ter tido um dia longo. Quando tiver vontade de ir para a cama, e só dizer”. Ela puxou o braço do cego. “Robert?”

Ele acordou e disse: “Tive momentos ótimos. Isso é mais legal do que as fitas, não e?”.

Falei: “Sua vez de novo”, e pus o baseado entre seus dedos. Ele inalou, prendeu a fumaça e depois soltou. Parecia que fazia aquilo desde o nove anos.

“Obrigado, meu camarada”, disse ele. “Mas acho que para mim já chega. Acho que estou começando a sentir”, disse. Ofereceu a guimba do baseado aceso para a minha mulher.

“Pois é”, disse ela. “Idem, idem. Eu também.” Ela pegou a guimba e passou para mim. ‘Acho que vou ficar aqui só mais um pouquinho, entre vocês dois, de olhos fechados. Mas não quero incomodar vocês, está legal? Nenhum dos dois. Se eu estiver incomodando e só dizer. Se eu não incomodar, vou ficar aqui sentada de olhos fechados até a hora de vocês irem para a cama”, disse ela. “Sua cama esta pronta, Robert, quando quiser ir. Fica bem do lado do nosso quarto, no alto da escada. A gente vai mostrar onde e quando você estiver pronto. Vocês me acordem, viu, vocês dois, se eu pegar no sono.” Disse isso, fechou os olhos e adormeceu.

O noticiário da teve terminou. Levantei e mudei de canal. Recostei-me no sofá. Bem que eu gostaria que minha mulher não tivesse apagado. A cabeça dela estava tombada para trás, sobre o encosto do sofá, e ela estava de boca aberta. Tinha virado de um jeito que o roupão havia escorregado de suas pernas, deixando à mostra uma coxa bem suculenta. Estiquei a mão para puxar o roupão por cima dela e ai lancei um olhar para o cego. Que diabo! Larguei a aba do roupão aberta outra vez.

“Se quiser mais um pouco de torta de morango e só dizer”, falei.

“Pode deixar”, respondeu.

Perguntei: “Esta cansado? Quer que eu leve você para a cama? Esta pronto para puxar um ronco?”.

“Ainda não”, disse ele. “Não, vou ficar acordado com você, meu camarada. Se não houver problema. Vou ficar acordado até você sentir vontade de ir dormir. Ainda não tivemos oportunidade de conversar. Sabe do que estou falando? “Acho que eu e ela acabamos monopolizando a noite.” Levantou a barba e a deixou cair de novo. Pegou seus cigarros e seu isqueiro.

“Não tem problema”, falei. Depois eu disse: “Estou contente de ter companhia”.

E acho que estava mesmo. Toda noite eu fumava maconha e ficava acordado o máximo que conseguia antes de pegar no sono. Era muito raro eu e minha mu­lher irmos para a cama no mesmo horário. Quando eu ia dormir, tinha aqueles sonhos. As vezes eu acordava de um sonho assim e meu coração batia feito doido.

Na tevê estava passando alguma coisa que tinha a ver com a Igreja e a Idade Media. Nada dessas coisas que a gente costuma ver na tevê. Eu queria ver outra coisa. Fui mudando de canal. Mas neles também não havia nada. Ai voltei para o primeiro canal e pedi desculpas.

“Meu camarada, esta tudo bem”, disse o cego. “Para mim está ótimo. O que você quiser ver esta bom. Estou sempre aprendendo alguma coisa. O aprendizado nunca termina. Não vai me fazer mal nenhum aprender alguma coisa esta noite. Sei ouvir”, disse ele

Ficamos calados por um tempo. Ele estava inclinado para a frente com a cabeça virada para mim, a orelha direita apontada para o televisor. Muito desconcertante. De vez em quando suas pálpebras tombavam e depois se abriam de repente. De vez em quando punha os dedos na barba e puxava, como se estivesse pensando em alguma coisa que estava ouvindo na tevê.

Na tela, um grupo de homens vestidos com capuz de monge estavam sendo atacados e atormentados por homens vestidos com fantasias de esqueleto e de diabo. Os homens vestidos de diabo usavam mascaras de diabo, chifres e rabos compridos. Aquela pantomima fazia parte de uma procissão. O inglês que estava narrando o negocio dizia que aquilo ocorria na Espanha uma vez por ano. Tentei explicar ao cego o que estava acontecendo.

"Esqueletos”, disse ele. “Sei o que são esqueletos”, disse, e assentiu com a cabeça.

A teve mostrou uma catedral. Depois veio uma tomada longa e lenta de outra catedral. Por fim, surgiu a imagem daquela catedral famosa em Paris, com seus arcobotantes suspensos e suas torres que subiam até as nuvens. A câmera recuou para mostrar o conjunto de catedrais se erguendo contra o horizonte.

O inglês que narrava aquele negócio de vez em quando ficava calado e simplesmente deixava a câmera passear sobre as catedrais. Ou então a câmera se voltava para paisagens rurais, homens andando atrás de bois em campos de lavoura. Esperei o mais que pude. Ai achei que eu precisava falar alguma coisa. Disse: "Agora estão mostrando a parte externa da catedral. As gárgulas. Umas estatuas pequenas esculpidas para parecerem monstros. Acho que agora estão na Itália. Tem pinturas nas paredes dessa igreja”.

"São afrescos, meu camarada?”, perguntou e tomou um gole do seu drinque.

Estendi a mão para alcançar meu copo. Mas estava vazio. Tentei me lembrar do que eu podia. “Esta me perguntando se são afrescos?”, falei. “Boa pergunta. Não sei.”

A câmera focalizou uma catedral nos arredores de Lisboa. As diferenças entre a catedral portuguesa e as francesas e italianas não eram lá muito grandes. Mas havia diferenças. Sobretudo no interior. Então me ocorreu uma coisa e eu falei: “Sabe, me ocorreu uma coisa. Você tem alguma ideia do que é uma cate­dral? Como é que elas são, entende? Esta sacando o que quero dizer? Se alguém diz para você ‘catedral’, você tem alguma ideia do que a pessoa esta falando? Sabe a diferença entre ela e uma igreja batista, por exemplo?”.

Ele soltou um pouco de fumaça pela boca. "Sei que sua construção exigia centenas de operários e que levavam cinquenta ou cem anos para ficar prontas disse. “Acabei de ouvir o homem falar isso, claro. Sei que diversas gerações das: mesmas famílias trabalhavam numa catedral. Ouvi o homem dizer isso também. Os homens que iniciavam a vida trabalhando numa catedral morriam sem ver seu trabalho concluído. Nesse aspecto, meu camarada, eles não são em nada diferentes de nós, certo?” Riu. Então suas pálpebras baixaram outra vez. A cabeça balançou um pouco, para cima e para baixo. Ele parecia estar cochilando. Talvez estivesse se imaginando em Portugal. Agora a tevê mostrava outra catedral. Ficava na Alemanha. A voz do inglês continuava sua lengalenga. “Catedrais”, disse o cego. Ergueu os ombros e rodou a cabeça de um lado para o outro. “Se que saber a verdade, meu camarada, isso é tudo que eu sei. Isso que acabei de dizer. O que ouvi o homem falar. Mas quem sabe você pode me descrever uma catedral? Eu gostaria que fizesse isso. Gostaria muito. Para dizer a verdade, não tenho uma boa ideia do que é uma catedral.”

Olhei com atenção a imagem da catedral na tevê. Como e que eu ia conseguir ate mesmo começar a descrever aquilo? Mas digamos que minha vida dependesse disso. Digamos que minha vida estivesse sendo ameaçada por um maluco que dissesse que eu tinha de fazer aquilo senão...

Observei mais um pouco a catedral antes de a imagem mudar de repente outra vez para uma paisagem rural. Não tinha jeito. Virei para o cego e disse: “Antes de mais nada, elas são muito altas”. Fiquei olhando em volta da sala, em busca de alguma ideia. “Elas sobem muito alto. Vão subindo, subindo a vida toda. Na direção do céu. Algumas são tão grandes que precisam de escoras. Que ajudem a sustentar, sabe. Essas escoras são chamadas de arcobotantes. Para mim, lembram os viadutos, não sei por quê. Mas talvez você também não saiba como são os viadutos, não é? As vezes as catedrais tem uns demônios, umas coisas assim esculpidas na frente. As vezes uns senhores e umas senhoras. Não me pergunte por que”, falei.

Ele fazia que sim com a cabeça. Toda a parte superior do seu corpo parecia se mover para a frente e para trás.

“Não estou me saindo muito bem, não é?”, falei.

Ele parou de balançar a cabeça e inclinou-se para a beira do sofá. Enquanto me ouvia, passava os dedos por dentro da barba. Eu não estava conseguindo explicar, dava para ver pela cara dele. Mesmo assim ele esperava que eu continuasse. Assentiu com a cabeça, como se quisesse me incentivar a prosseguir. Tentei achar mais alguma coisa para dizer. “Elas são grandes mesmo", falei. “São pesadas. São feitas de pedra. De mármore também, as vezes. Antigamente, na época em que os homens construíam catedrais, eles queriam ficar perto de Deus. Antigamente, Deus era uma parte importante da vida de todo mundo. Dá para ver isso pela construção das catedrais. Desculpe”, falei, "mas parece que isso e o máximo que consigo fazer por você. Eu não sou bom nisso.”

“Tudo bem, meu camarada”, disse o cego. "Ei, escute. Espero que não se importe de eu perguntar. Mas posso perguntar uma coisa para você? Deixe eu fazer a você uma pergunta simples, do tipo sim ou não. É que estou curioso, e não há nenhum desrespeito no que vou perguntar. Você é meu anfitrião. Mas queria perguntar se você tem algum tipo de religião. Não se importa que eu pergunte?”

Fiz que não com a cabeça. No entanto, ele não podia ver isso. Um piscar de olhos e um balance) da cabeça são a mesma coisa para um cego. “Acho que não acredito nisso. Em nada. As vezes não é fácil. Sabe como é?”

“Claro que sim”, respondeu.

"Certo”, falei.

O inglês continuava falando. Minha mulher deu um suspiro dormindo. Respirou fundo e continuou a dormir.

“Você vai ter que me desculpar”, falei. "Mas não consigo explicar a você como é o aspecto de uma catedral. Não tenho essa capacidade. Não consigo dizer mais do que já disse.”

O cego permaneceu imóvel, de cabeça baixa enquanto me ouvia falar.

Falei: “A verdade e que as catedrais não tem nenhum significado especial para mim. Nada. Catedrais. São uma coisa para a gente ficar vendo na tevê tarde da noite. E só isso que são”.

Foi aí que o cego pigarreou para limpar a garganta. Levantou alguma coisa na mão. Tinha tirado um lenço do bolso de trás. Depois falou: “Entendo, meu camarada. Está tudo bem. Acontece. Não se preocupe”, falou. “Ei, escute aqui. Pode me fazer um favor? Tive uma ideia. Você podia arranjar um papel grosso? E uma caneta? Vamos fazer uma coisa. Vamos desenhar uma catedral juntos. Pegue uma caneta e um papel grosso. Vamos lá, meu camarada, traga esse ma­terial”, disse.

Então fui até o andar de cima. Minhas pernas pareciam estar sem força. A sensação era que eu tinha acabado de voltar de uma corrida. No quarto da minha mulher, dei uma olhada em volta. Achei umas esferográficas numa cestinha mesa dela. E depois tentei pensar onde podia encontrar o tipo de papel que ele estava pedindo.

No térreo, na cozinha, achei um saco de compras com umas cascas de cebola no fundo. Esvaziei o saco e sacudi com força. Levei-o para a sala e sentei no chão com ele, perto das pernas do cego. Tirei algumas coisas do lugar, alisei as rugas do saco de papel, estendi o saco em cima da mesinha de centro.

O cego desceu do sofá e sentou no tapete ao meu lado.

Ele passou os dedos sobre o papel. Subiu e desceu os dedos pelas margens do papel. As beiradas, até as beiradas. Ele tocou todos os cantos.

"Tudo bem”, disse. "Tudo bem, vamos fazer uma.”

Localizou minha mão, a mão com a caneta. Fechou a sua mão em cima da minha. "Agora vamos lá, meu camarada, desenhe”, disse. “Desenhe. Você vai ver. Vou acompanhar você. Vai dar certo. É só começar do jeito como estou dizendo. Você vai ver. Desenhe”, disse o cego.

Então comecei. Primeiro desenhei uma caixa que parecia uma casa. Podia ser a casa onde eu morava. Depois fiz um telhado em cima. Nas duas pontas do telhado, pus torres. Que doideira.

"Ótimo”, disse ele. “Fantástico. Você esta indo muito bem”, disse. “Nunca imaginou que uma coisa assim podia acontecer na sua vida, não é, meu camara­da? Bem, a vida e uma coisa estranha mesmo, todos sabem disso. Agora vá em frente. Continue.”

Acrescentei janelas com arcos. Desenhei os arcobotantes. Pus umas portas grandes. Não conseguia parar. O canal de tevê saiu do ar. Baixei a caneta e fechei e abri os dedos. O cego tateou a superfície do papel. Moveu as pontas dos dedos pelo papel, percorreu tudo o que eu havia desenhado e assentiu com a cabeça.

“Está muito bom”, disse o cego.

Peguei a caneta de novo e ele achou minha mão. Continuei. Não sou nenhum artista nem nada. Mas continuei desenhando assim mesmo.

Minha mulher abriu os olhos e olhou para nos. Ela se endireitou no sofá, seu roupão ainda aberto. Falou: “O que vocês estão fazendo? Me contem, quero saber”.

Não respondi.

O cego disse: "Estamos desenhando uma catedral. Eu e ele estamos fazendo esse trabalho. Aperte a caneta com força”, ele me disse. ‘Assim mesmo. Muito bem”, disse. “Claro. Você pegou o jeito, meu camarada. Não há duvida. Você achava que não ia conseguir. Mas consegue, não é? Agora você esquentou os motores. Entende o que estou dizendo? Daqui a pouco a gente vai conseguir fazer aqui uma coisa fora do comum. E o velho braço, como vai?”, perguntou. "Vamos por umas pessoas lá dentro agora. O que é uma catedral sem gente?”

Minha mulher disse: “O que e que esta acontecendo? Robert, o que você está fazendo? O que esta acontecendo?”.

“Está tudo bem”, disse ele. "Agora feche os olhos”, disse o cego para mim.

Fechei. Fechei os olhos como ele disse.

“Estão fechados?”, perguntou. “Não pode trapacear.”

"Estão fechados”, falei.

"Fique com os olhos assim”, disse ele. “Agora não pare, continue desenhando.”

E a gente continuou desenhando. Os dedos dele guiavam os meus, enquanto minha mão se movia sobre o papel. Nunca na vida eu tinha experimentado uma coisa assim.

Então ele disse: “Acho que está pronto. Acho que você conseguiu”, disse ele. “De uma olhada. O que acha?".

Mas eu estava de olhos fechados. Fiquei com vontade de manter os olhos fechados por mais tempo. Achei que era uma coisa que eu devia fazer.

“E então?”, perguntou ele. “Esta vendo?”

Meus olhos ainda estavam fechados. Eu estava na minha casa. Sabia disso. Mas não tinha a sensação de estar dentro de nada.

“É mesmo incrível."



Raymond Carver (1938-1988),
nascido no Oregon,
é presença garantida,
ao lado de Tchekhov, Maupassant e Borges,
em qualquer lista de maiores autores
de contos de todo o mundo.
Teve uma vida conturbada
e dificuldades para conviver com o álcool
mas sua produção e carreira literária
foram brilhantes graças a sua genialidade
e também ao apoio de duas pessoas:
John Gardner, seu professor de escrita criativa,
e Gordon Lish, seu editor.
Catedral é um exemplo deste universo
de emoções e relações invisíveis
que sempre permeiam os diálogos
(aparentemente inofensivos) de Carver.