Saturday, July 15, 2017

FICO LOUCO, FAÇO CARA DE MAL, FALO O QUE ME VEM NA CABEÇA (uma crônica de Antonio Luiz Nilo)



Há pouco mais de 15 anos tive a honra de trabalhar com o amigo e diretor Rogério Velloso escrevendo alguns roteiros para comerciais da TIM que ele, como sempre, dirigiu com brilhantismo.

Não sei o motivo, mas ontem de noite me bateu uma rara e inexplicável tristeza. Depois de alguns minutos de inquietação, finalmente alcancei o controle. O remoto.

Ao passar zapeando pelo Canal Curta fui atingido por um fulminante flash informativo de 2 segundos que anunciava, para minha surpresa, algo relacionado com Rogerio Velloso e Itamar Assumpção. Foi o suficiente para tranquilizar o meu dedo nervoso e tentar entender o porquê daquela parceria. Dois segundos podem parecer pouco, mas são uma eternidade para justificar o meu lento raciocínio: obviamente se tratava de um documentário sobre o extraordinário compositor Itamar Assumpção dirigido pelo talentoso Velloso. O Rogério.

Por sorte, faltavam apenas 15 minutos para começar o filme, tempo suficiente para desestabilizar a minha dieta semanal com as 625 calorias de um saco de pipoca de micro-ondas e os 36g de açúcar do copo de suco de uva “do mal”. Como diria o próprio Itamar em Milágrimas, “...em caso de tristeza, vire a mesa... coma só a sobremesa”.

Itamar Assumpção é um capítulo à parte na história da música brasileira. Apesar de ser a maior e mais criativa representação da vanguarda paulista da década de 80 (talvez o movimento mais alternativo da história da MPB), o único título que o genial compositor conquistou em vida foi o de maldito.

Maldito, vulgo Nego Dito. Nego Dito Cascavé. Maldito pode até ser um elogio em “outras artes”. Na literatura, por exemplo, Baudelaire, Céline, Henry Miller, John Fante e Bukowski receberam o mesmo rótulo e são considerados monstros sagrados das letras. Isso na França e nos Estados Unidos, é claro. No Brasil, e ainda mais na música popular brasileira, tão historicamente comportada e politicamente correta (com exceção, é claro, dos simbolismos e hermetismos de Caetano, Chico e companhia), a alcunha com certeza lhe privaria do sucesso.

E foi exatamente o que aconteceu.

O genial autor de Nego Dito, Dor Elegante, Fico Louco e as incríveis versões de Ataulfo Alves, morreu praticamente no anonimato. Cultuado apenas por um público super seleto e pela classe musical mais esclarecida, o maldito Nego Dito negou a indústria fonográfica, tentando manter-se fiel ao seu estilo áspero de se comunicar e tortuoso de compor melodias e letras. E essa ousadia lhe fez perder contratos, ganhar desafetos e encarar uma vida sem luxos, mas repleta de orgulho e amor-próprio. Possuía aquela mistura perigosa de introspecção e controvérsia. É como diz a letra de sua música: Sou galo no meu terreiro, nos outros abaixo a crista. Me calo feito mineiro, no mais vida de artista.

O documentário, produzido em 2011, é cirúrgico ao narrar a trajetória desse artista incomum, discriminado não apenas por sua cor, mas por suas ideias extravagantes. E precioso ao desmontar a figura frenética e intransigente do personagem central e retratar o seu perfil humano, amoroso, familiar e melancólico.

Com o título “Daquele Instante em Diante”, o filme destila depoimentos carregados de paixão e saudade. A poetiza e parceira Alice Ruiz, sua filha e herdeira musical Anelis Assumpção, a mulher, a primogênita e os artistas que dividiram o palco e as angústias com ele, intercalam suas histórias com trechos de shows, entrevistas e depoimentos do próprio Itamar numa edição de tirar o fôlego.

O documentário, construído com sensibilidade e apuro por Velloso, revela momentos memoráveis como o de um show de Itamar onde Elke Maravilha entra em cena interpretando a Morte (a morte iminente do compositor):

Eu só vim te advertir
apenas te dar um toque
Inútil tentar fugir
Cuide-se bem, se comporte

Aliás, um dos pontos trabalhados com mais delicadeza na montagem do filme é sem dúvida a evolução gradativa da sua profunda mágoa por não atingir o sucesso, culminando na doença que o tiraria de cena aos 53 anos de idade.

Tentando cortar o rabinho do spoiler, uma boa notícia para os que ainda não assistiram ao documentário: hoje, 15/07, tem reapresentação no Canal Viva às 22h. Vale a pena conhecer um pouco mais sobre a vida desse mestre da música brasileira. Uma vida cheia de amor, sofrimento e coragem. Para fazer um resumo da obra, um trecho da letra de uma de suas grandes parcerias com Leminski:

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra.


Antonio Luiz Nilo
nasceu em Santos
e é redator publicitário
e diretor de criação
há quase 30 anos,
com prêmios nacionais
e internacionais.
Circulou a trabalho
por todo o país,
com paradas prolongadas
em Brasília,
Belo Horizonte
e Salvador.
Publicou em 1986
"Poemas de Duas Gerações"
e, mais recentemente, o romance
"Ascensão e Queda de Pedro Pluma"
(à venda em alnilo@gmail.com).
Além disso, atuou como cronista
para o diário Correio da Bahia.
De volta a Santos desde 2013,
Antonio segue sua trajetória
cuidando de Projetos Especiais
na Fenômeno Propaganda
e como sócio-diretor
da Agência de Textos
TP Texto Profissional.



 

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