Wednesday, July 5, 2017

CANTANDO EM OUTRA FREGUESIA (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



Uma das grandes desavenças que podem naturalmente brotar quando se administra um estabelecimento comercial é o repasse da ocorrência do alheio.

Alguns(mas) fregueses(as) costumam transformar uma Mercearia numa espécie de ‘ponto de encontro’, lugar para reunir amigos & inimigos, desopilar o fígado, confessar pecados, fazer terapia.

Às vezes, para o desconsolo do merceeiro, posto que nenhuma mercadoria à venda é comprada.

O costume do ser humano em transformar lugares como ‘resorts’ sabe-se lá ‘do’ e ‘para’ o quê é um troço profundamente ancestral. E desde que se saiba modificar alguns dados, certas historietas são irresistíveis: no melhor estilo Jean Cocteau, é possível se divertir às pencas com os fatos narrados por esse(a) ou aquele(a).

Reza a lenda que uma deusa-classe-média de um bairro popular dessa combalida ilha atiçava deveras as sanhas e os ímpetos de um feirante cuja atuação de seu ofício, em certo dia da semana, ocorria nas imediações da residência dela.

A mulher era um monumento! Fazia Sônia Braga, Rachel Weiss, Audrey Hepburn & Cia Ltda., no frescor de seus 30, passarem perrengue (ou vergonha!). Não é que “... fechava o comércio”, não: abria o comércio, fechava o comércio, fazia o comércio entrar em liquidação, protestar contra severos impostos... uma acontecimento!

Aquele exemplar do gênero feminino que era “cama, mesa & banho”: qualquer desavisado ficava com a cabeça cheia de idéias. Por mais modesto e pacato que fosse o sujeito, o coitado entrava em perfeita perturbação com aquela mulher que era a tentação em forma de gente.

O feirante lançou-se, assim, ao ver aquela deusa circular vaporosa com sua sensualidade (e como diria Moreira da Silva), a uma “conquista de amor”.

Nesse caso, é bom avisar o(a) querido(a) freguês(a) que cada um luta com as armas que tem.

Sendo, acima de tudo, um sujeito rústico (acreditem: há plateia para tal abordagem!), não é que ele “... chegava junto” para valer: era o ‘junto’ que chegava nele. O cidadão enlouquecia com aquela visão: partiu para cima da mulher como um esfomeado se debruça sobre um prato de comida. Coisa de maluco: flores, cestas com frutas, verduras & legumes “na faixa”... um troço!

Tudo acompanhado de um tecido verbal tão rudimentar quanto, algo sensivelmente longe de qualquer poética seiscentista: ou seja, a manifestação oral do desejo irrefreável do feirante por aquela fêmea era bem mais próxima da letra de um funk carioca ‘picante’ do que a mais elevada e rebuscada poesia de um Cruz e Souza.

Por esses ‘meandros’ inomináveis, que Freud explica, mas a gente não entende como é que essas pessoas se permitem a tal advento, a deusa cedeu: “Ah, é?! Passa lá em casa na segunda...”.

“Finalmente!”, disse o feirante. Toneladas de investimentos em ‘hortifrutis’, saliva, disposição, cantadas, perseguições ‘e tais’ seriam devidamente recompensadas com o seu quinhão.

Na segunda (tradicional dia de descanso semanal das feiras-livres), o sujeito partiu para lá, sem antes se preparar inclusive fisicamente como se fosse enfrentar o líder do campeonato nacional.


Empapuçou-se de “Très Brut, de Marchand” porque Avanço era meio mancada para um evento tão importante como aquele. Levou flores, alguns adocicados acepipes e um tesão cavalar. Tudo pronto para o abate, chegara o grande dia!

A “guerra amorosa” daquele encontro teve os preparativos para a primeira batalha com a recepção assombrosa daquela mulher maravilhosa num baby-doll que mostrava tudo, mas escondia a emoção principal: para dar aquela atiçada básica, meeeeeeessmo! Ao final do descortinar da tão parca indumentária, deram-se os rumos da batalha inicial, com seus prólogos e o escambau.

Com sede de guerra, todas as armas funcionaram que era uma beleza: artilharia potente, cavalaria atropelando sem dó, nem piedade, infantaria avançando com uma bravura de primeira grande guerra. Um espetáculo!

Na hora da intendência, o ‘banquete’ se vira para o distraído feirante e desafia: “e, aí, amor... você não vem de novo?!”.

Hmmm... por essa ele não esperava. Havia pensado que a fatura estava liquidada, logo: 1 batalha = 1 guerra. Na-na-ni-na-nina! Jamais esqueçamos que uma guerra sempre será um conjunto de batalhas.

“Você não vem?! Vamos de novo...”, disse a fogosa mulher.

Aí, houve um problema com a arma de comunicação (todo militar sabe que a Arma de Comunicação dentro de um exército é a “Arma do Comando”) e a segunda batalha foi custosa: a Artilharia sofreu para ajustar uma já paupérrima munição com o teatro de ações, a Cavalaria já não tinha combustível para o seus blindados e sobrou para a Infantaria severas baixas para dar conta do recado.

Nova hora da intendência... a fêmea em chamas sapecou:

“Ai, amor... ‘tô’ louca ‘pro’ repeteco”.

“Hã?!”, disfarçou o feirante.

“Ah, vai me dizer que você me cantou esse tempo todo e agora que estamos aqui você vai me negar fogo?! Vamos de novo... claro! Eu quero! Quantas vezes eu quiser...”.

Uma terceira batalha em questão de horas não estava no ‘script’. A artilharia silenciou, a cavalaria estacionou e a infantaria se entrincheirara. Sem condições. “Ah, vai me dizer que você veio aqui só ‘pra’ isso?!”, sentenciara a mulher.


Silenciosamente, ao reconhecer a derrota, tomou suas peças de roupa, vestiu-as e voltou para casa sem ao menos discutir os acordos de rendição. A ‘mulher dos sonhos’ acabara de se transformar no mais puro pesadelo. Cruel, ela! Citando a turma do Casseta & Planeta, ela atropelara a máxima que todo Clube da Luluzinha deveria se ater ao lidar com o Clube do Bolinha: “(...) seu brinquedinho é ‘de abrir’, mas o meu é ‘de armar’ (...)”. [sic]

Como os acordos de rendição não foram postos no papel, a mulher saiu aos quatro ventos contando sobre o péssimo general que o feirante era. A humilhação fôra tanta que, como corre-se à boca pequena, teve de cantar em outra freguesia. Nunca mais apareceu para trabalhar naquela barraca.

Moral da história: nunca subestime um adversário. E, acima de tudo, saiba bem escolher qual guerra o(a) querido(a) freguês(a) deseja guerrear.



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


No comments:

Post a Comment