Wednesday, July 5, 2017

A TEORIA DA INVOLUÇÃO (uma crônica em tom de desabafo de Antonio Luiz Nilo)


ATENÇÃO: ESTE TEXTO TEM MAIS DE 100 LINHAS. SE VOCÊ É PREGUIÇOSO COM A LEITURA, NÃO PERCA O SEU TEMPO. ATÉ PORQUE VOCÊ CORRE O RISCO DE CHEGAR AO FINAL DO TEXTO E AINDA NÃO CONCORDAR COMIGO.


Uma das poucas histórias que eu lembro de minha mãe contar sobre uma viagem sua à Europa, no finalzinho da década de 60, foi a de um banheiro público na Alemanha (não me recordo a cidade) onde era necessário colocar uma moeda de alguns centavos de marco para que pudesse ser frequentado. E o que ficou na memória foi justamente o “jeitinho” que deu a excursão de brasileiros ao escalar alguém para ficar com o pé na porta até que todos entrassem e fizessem o seu xixi sem gastar suas preciosas moedas.

Lembro também de, na companhia de outros 8 ou 10 meninos de 12 ou 13 anos, ter pulado o muro da escola onde eu cursei o final do meu (então) ginásio e início do colegial para jogar basquete na ausência de professores, bedéis e outros alunos. E no final do jogo, incendiar um banco de madeira do pátio da escola e roubar alguns doces da cantina mal trancada... só por molecagem.

Outra imagem que não me foge é a de meu pai sendo parado na estrada, com meu primo mais velho ao seu lado e eu e minhas irmãs no banco de trás, para ser multado por ter a habilitação vencida. Recordo perfeitamente o meu pai levando o guarda pelo braço pra que pudessem conversar fora do alcance de todos.

Ou ainda das mercearias do meu bairro onde eu surrupiava doces e chicletes longe do olhar vigilante dos donos... dos 6 patinhos que eu estrangulei na casa de minha tia quando minha mãe se descuidou um pouco de mim... das lagartixas que levávamos para passear na rua com uma linha amarrada em seus pescocinhos depois que injetávamos tinta colorida em seus corpinhos transparentes para criar efeitos visuais... dos baiacus que pescávamos com linhada na Ponta da Praia só para inflar os peixes depois de coçar suas barrigas e atirá-los debaixo das rodas dos ônibus para vê-los explodir... ou das notas falsas de dólar que um amigo me deu dizendo que não tinha como trocar e que eu consegui, com a ajuda de meu pai, entrar no porto e com elas poder comprar óculos Ray-Ban e tênis Adidas dentro dos navios sem que os gringos percebessem que estavam sendo ludibriados.

Pois é, minha gente, tudo isso aí aconteceu de fato comigo e com minha família. Aliás, eu poderia colocar mais umas 5 ou 6 historiazinhas como essas aqui, até bem mais cabeludas, mas o texto se alongaria desnecessariamente.

O que eu quero dizer com essas pequenas confissões é que o mundo mudou e muito. Mas ainda tenho algumas dúvidas se para melhor ou pior.

Quem me conhece ou conhece minha família sabe muito bem do grau de honestidade, lisura, respeito e justiça que cada um de nós é portador. Mas eu aposto que muita gente que acabou de ler o texto acima deve estar fazendo um péssimo juízo do confidente. São de fato atitudes absolutamente censuráveis. Algumas até sórdidas e desprezíveis. Mas que devem, antes de pré-avaliadas ou pré-conceituadas, ser enxergadas com os olhos da época.

Minha mãe e meu pai merecem uma absolvição imediata. Ela, por não ter concordado com o pé na porta do banheiro alemão, apesar de contar a história com entusiasmo... ele, por ter facilitado minha entrada no cais sem saber do meu interesse. E, quanto à conversa com o guarda de trânsito, acho que aquela geração merece um puxão de orelha, mas não uma condenação. Todos agiam assim. Já em relação ao meu comportamento, só me resta pedir desculpas em público. A molecada naquela época era terrível mesmo. Uns mais, outros nem tanto. Apanhei um bocado dos meus pais por essas travessuras. A sorte é que eles só souberam de uma pequena parte.

As décadas de 60, 70 e 80 fazem parte na verdade de um período que precede a transição daquilo que podemos chamar de respeito aos valores sociais. Uma época em que se cometia uma série de arbitrariedades e descortesias de forma absolutamente natural, sem maldade ou hipocrisia. Fumar em aviões, restaurantes, cinema até em elevadores era muito comum. Não havia o mínimo constrangimento ao se chegar na casa de um amigo e acender um cigarro, um charuto ou um cachimbo. Algumas pessoas podiam até não gostar da fumaça ou do hábito, mas era plenamente admissível. O cinema ditava as regras de etiqueta e, na telona, fumar era elegante e sofisticado.

Aliás, assistir hoje a um filme, série ou novela das décadas de 60 ou 70 pode ser meio repulsivo para quem tem menos de 40 anos. Cuspir na rua, amassar um maço de cigarros e jogá-lo no chão, dar uns tabefes nos filhos, estimular o bullying de crianças gordinhas, chamar afrodescendentes de preto ou nigger, apresentar a esposa como Dona Encrenca ou Rádio Patroa eram cenas incrivelmente normais. E o cinema e a TV eram sem dúvida as maiores referências de costumes da época.

Pode parecer que um sujeito como eu, que está ali entre os baby-boomers e a Geração X, queira defender essas insanidades sociais da época em que viveu. É claro que não. Aliás, nem mesmo na época. São atitudes realmente vergonhosas. Mas esse tipo de vergonha foi, para a maioria, entendida e aprendida apenas com o passar dos anos. Com a necessidade de não se invadir os espaços alheios, de se respeitar as pessoas, as suas crenças, as suas escolhas.

As pessoas, que na época achavam normais essas estranhas atitudes, eram as mesmas que abriam as portas do carro para que as mulheres entrassem; que puxavam a cadeira da mesa do restaurante para que os mais velhos sentassem; que andavam na calçada do lado da rua para proteger a namorada ou uma simples amiga; que chamavam os mais velhos de senhor ou senhora; que jamais levantavam a voz para os pais ou as pessoas mais idosas; que mantinham o silêncio enquanto o outro falava e que cumprimentavam as pessoas na rua, sem conhecê-las.

Uma pura questão de valores. Por isso, quando eu vejo essa galera de hoje achincalhando os amigos no facebook querendo impor descontroladamente a sua visão política, social ou sexual... ou quando ouço um garoto da 12 anos de idade mandando sua mãe tomar no cu, acabo criando uma enorme confusão na minha cabeça tentando compará-los aos “preconceituosos” da minha época. Sinceramente, acho que, em termos de respeito, mesmo com toda essa corrente politicamente correta de hoje, o mundo involuiu. Até porque, como eu já disse, os da minha época cometiam essas atrocidades por pura ignorância, enquanto que os de agora são radicais, beligerantes e até mesmo cruéis, tentando validar conscientemente as suas opiniões. E o pior é que se acovardam na segurança das redes sociais onde só podem ser atingidos por textos. Enquanto que os meus contemporâneos, apesar de chucros, tinham a coragem de dar a cara a tapa numa discussão de mesa de bar.

É de fato importantíssimo não ser homofóbico ou racista nos dias de hoje, mas respeitar as pessoas e as suas opiniões é mais importante ainda. Prefiro mil vezes o meu tio-avô-sem-noção insinuando que alguns amigos meus eram “boiolas” do que um babaca de um garoto de 17 anos querendo cagar regras sociais no seu mundinho virtual.

Sugiro a experiência de uma mesa de bar... e, quem sabe, a de uns tapas na cara.



Antonio Luiz Nilo

nasceu em Santos
e é redator publicitário
e diretor de criação
há quase 30 anos,
com prêmios nacionais
e internacionais.
Circulou a trabalho
por todo o país,
com paradas prolongadas
em Brasília,
Belo Horizonte
e Salvador.
Publicou em 1986
"Poemas de Duas Gerações"
e, mais recentemente, o romance
"Ascensão e Queda de Pedro Pluma"
(à venda em alnilo@gmail.com).
Além disso, atuou como cronista
para o diário Correio da Bahia.
De volta a Santos desde 2013,
Antonio segue sua trajetória
cuidando de Projetos Especiais
na Fenômeno Propaganda
e como sócio-diretor
da Agência de Textos
TP Texto Profissional.




 

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